Num cantinho recatado de mim, assim meio obscurecido pela ramagem das árvores que se debruçam, existe um portão de madeira. Camuflado um pouco mais pelo verde das trepadeiras que se insinuam. Donde dois fios que se soltam enlaçam uma maçaneta de ferro. Por baixo da maçaneta, uma fechadura de ferro também. Oxidada pelas águas de Abril (e de Abril só porque neste recanto não existem Invernos nem existem Outonos, as estações alternam entre Primavera e Verão). Impaciente, tiro a chave do bolso e dou três voltas na fechadura. Range um pouco a chave, mas desliza na perfeição. Sem poder esperar um instante, com a ansiedade que se me extravasa, abro as portadas de rompante.
Suspiro. À minha frente um lençol estampado de flores espraia-se até perder de vista. Estendo-me e rebolo nele, e fico polvilhada de gotas de orvalho. Corro sem rumo por entre as flores, que não se machucam à minha passagem. Aqui e acolá cogumelos, um caracol que dorme numa parra, uma joaninha que vagueia sem rumo também.
Avisto ao longe um castelo, recortado sobre nuvens brancas. Nuvens? Se me aproximar vejo que não são. São quadriláteros de papel salpicados de tinta vermelha. Têm pés para se deslocar e uma cabeça vermelha. São os soldados da Rainha de Copas. Não, não é o País da Alice. Mas é, de alguma forma, o País das Maravilhas.
Neste jardim todas as estórias se mesclam numa amálgama indecifrável. Como se retiradas de um livro gigante, página a página, lançadas depois ao vento para cairem à toa no chão.
Ao fundo, a linha do horizonte segue os contornos de uma montanha. Esguia, deslumbrante. No cimo ergue-se um palácio pintado de cor-de-rosa. O Palácio da Bela Adormecida.
Conheço de cor os becos deste país de fadas. Nas traseiras do palácio, há duas cabanas e uma casa. Das primeiras, uma é da palha, a outra de pau. A casa, de tijolo e cimento. É lá que moram os três porquinhos, zelosos da sua missão de guardar o palácio dia e noite. Não, neste lugar do mundo a cabana de palha não vai com o vento, nem a de pau se desfaz com a chuva.
Avanço pela direita, e embrenho-me na floresta que começa aí. Densa, opressiva, povoada de sombras. Vejo uma menina a passar com um cestinho na mão. Reconheço-a logo como o Capuchinho Vermelho, pela maneira como vem vestida. Olá, Capuchinho. Olá, bom dia. Acelero um pouco o passo porque, confesso, não me sinto muito segura na travessia da floresta desde que ouvi falar de um lobo mau que viveria lá. Na minha pressa, ai de mim!, tropeço em qualquer coisa. Não caio por um triz, mas tenho de me recostar para me recompor do susto. Na robustez de um tronco de cipreste, encontro o alento para retomar a viagem e recupero a nitidez dos sentidos. Que, supreendentemente, me revelam a forma e a textura do objecto em que tropecei: um sapatinho de cristal! Um pouco atarantada, pego nele, contando que alguém mo venha reinvindicar, e entrego-me ao caminho. Já vislumbro o fim da floresta quando algo me detém novamente: um cavalheiro aproxima-se e aborda-me com um sorriso arrebatador. Pede-me o sapato que trago na mão. E eu fico sem saber que fazer, ante a visão de tão esbelta figura. Quero prolongar o momento, mas ele não está para conversas. Pede-me, mais uma vez, o sapatinho da Cinderela. Claro, como é que eu não me lembrei?! O sapato da Cinderela! Entrego-lho e justifico-me: sabe, vinha tão esmagada de medo pelos rumores sobre o lobo mau, que julgo nem ter percebido o que me disse ainda há pouco. Não há tempo a perder, sendo assim, pois a Cinderela está à sua espera. Obrigado, respondeu, e não dê ouvidos ao que se diz sobre o lobo mau. É uma personagem inventada por contadores de estórias. Na realidade, aqui não há lobos maus, nem tão-pouco bruxas ou madrastas más. Este é o reino das coisas boas. Respiro de alívio. Então adeus, Príncipe, e boa sorte.
Meto-me por um caminho de pedra, ladeado de girassóis. Passam borboletas em voo rasante sobre o meu cabelo, que dança ao sabor da brisa daquele fim de tarde. Eis senão quando, ora esta!, não é que tropeço numa maçã que vem aterrar aos meus pés?! Caio redonda no chão, e logo sou acudida por sete anõezinhos alarmados com o estrondo. Vinham todos juntos procurar a maçã que a Fada Madrinha lhes dera para curar a Branca de Neve. Doentinha do coração porque o Príncipe não reparava nela. Não o da Bela Adormecida, não o da Cinderela, mas sim outro que seria só dela. Depois de comer a maçã, claro. Pois despistados que eram os sete anõezinhos, na algazarra da viagem logo haviam de a perder no caminho! Ainda bem que caiste!, disseram. Queremos dizer, ainda bem que não te magoaste! Pois sem o estrondo que tu fizeste, tão depressa não daríamos pelo paradeiro dela. Obrigado! De nada, respondi, e boa sorte.
De repente, tenho um sobressalto. Um trovão, talvez. Dou por mim de frente para a janela do quarto. Lá fora um dia cinzento, carregado de nuvens. Ao meu lado a televisão mostra imagens de destroços provocados por um atentado suicida na Faixa de Gaza. Descortino, ainda ao longe, a voz pesarosa de um jornalista que me devolve à realidade. 50 mortos até ao momento, 80 feridos graves, 100 feridos ligeiros, 150 desaparecidos... As operações de busca prosseguem na esperança de resgatar os últimos sobreviventes de baixo dos escombros...
Não... não... não...
Sorrateiramente, esgueiro-me pelo portão de madeira que ficou entreaberto, e volto para o meu país de fadas.