Sunday, March 26, 2006

Comboios


Pelos comboios de letras do livro mais entediante que conheço (desculpa Harrison, curvo-me perante a tua sabedoria, mas não és de todo simpático), arrasto-me nesta tarde de domingo. Respiro fundo, bem fundo. Suspiro. Reentro na carruagem de onde saíra tempos atrás. Despida da vontade que dantes me impelia para as coisas. Avanço, recuo, páro, retomo ou recomeço. Por mais nauseada que esteja de tanto andar, recuar, parar, retomar, recomeçar, andar.

Anseio por chegar à estação de destino com algo que ainda reste de mim. Da minha periclitante sanidade mental. Mas ai!, o caminho é incerto e cheio de curvas, e o medo de descarrilar assombra-me na antecipação dos troços mais irregulares. O medo de ver a réstia de sanidade mental que detenho esfumar-se no impacto do acidente.

Na carruagem de onde saí, vou ver se sobrou um lugar para mim. Vou pedir ao maquinista para carregar no acelerador. Vou explicar-lhe que os dias à nossa frente se consomem sem solidariedade para com os quilómetros de letras a percorrer.

Vega, aka C.V.O.

Sunday, March 12, 2006

O relativismo de uma simples frase

Deveria haver um dicionário universal de sentimentos, para que as pessoas não fizessem tanta confusão nessa matéria. Considerando embora a hipótese de estar a ser preconceituosa, percorre-me um prurido interior sempre que ouço a palavra “Amo-te” soltar-se entre duas pessoas que se conhecem há semanas, ou meses (insultuosamente leve demais, se comparada à minha noção desse outro “Amo-te” que precisa de anos para nos invadir e arder nos lábios). Se neste assunto sou um tanto ou quanto preconceituosa (e é algo que também me incomoda), desculpo-me com o facto de não se ter implementado ainda uma escala de sentimentos bem definidos degrau a degrau. Assim sendo, se queremos verbalizar (oral ou mentalmente) o estado de alma em que alguém nos deixou, baseamo-nos numa escala individual e arbitrária, influenciada pela nossa experiência pessoal. Amores e desamores passados são os tijolos com que construímos esse edifício a que chamamos amor e que tomamos como referência para julgar o que nos vai na alma. Deste modo se geram mal-entendidos e se esgotam facilmente os termos para nomear o que sentimos mais acima, quando sem aviso prévio a escala nos surpreende com um degrau adicional. Para evitar uma coisa e outra, proponho uma definição do conceito em causa (poética como o é o conceito que se propõe definir), d` Estes difíceis amores de Júlio Machado Vaz:

“Eis-nos aqui. Domingo de sol, passeio junto ao mar, esses olhos azuis que o desejo nublava fitam-me transparentes, agressivos de tão risonhos, «como estás?». Como estou? E tu que achas, vendo-te assim acompanhada? Ele tem bom aspecto, sorriso franco, nada indica o ciúme de paixão mal resolvida da tua parte; sente-se seguro. Esqueceste-me. Pior!, já és minha amiga. Pronto, querida, vou ser politicamente correcto, «bem». O tempo, o amigo comum que encontraste e me acha cansado, a etiqueta, «este é o...». Que interessa o nome?, é o teu homem, «muito prazer». Ele sorri, sabe que não sinto a frase, mas compreende, afinal sou o tipo que perdeu a mulher que ele não dispensa, «muito prazer». Um silêncio constrangido entre os dois que resolves com à-vontade, «foi bom ver-te». Era necessário humilhar-me tanto? Uma vontade imensa de te abanar - «sou eu, lembras-te?, tinhas a certeza que era o amor da tua vida...» -, acorda!, ainda podemos... Os dois afastando-se, o braço dele sobre os teus ombros, o segredo ao ouvido e esse cabelo, onde me perdia, volteando ao ritmo da gargalhada. Serias incapaz da chacota a meu respeito, é outra a razão, simples e infernal – estás feliz. E uma parte de mim, ainda tímida, quase clandestina, deixa cair os braços e reconhece derrota e culpa, fica grata pelo que me deste e murmura um «boa sorte» que todo o resto do que sou fita horrorizado.
Será isto, finalmente, o amor?»

Vega, aka C.V.O.