Sunday, December 16, 2007

O aperto

E sempre aquele aperto, que não a deixa dormir. Que se lhe crava à alma, com as unhas afiadas, mergulhando bem fundo, até às entranhas, sem se condoer com o sangue deitado nem com os gritos surdos de dor. Aquele mesmo aperto, sempre. Pérfido e cruel, com o seu velho costume de se aproximar sem se fazer ouvir, caminhando em pezinhos de lã e trazendo consigo um sorriso fechado, um meio sorriso falso que promete o que sabe não poder cumprir, metade de um sorriso que a beija e acaricia, descendo devagarinho, enquanto, dissimulado, devagarinho também, se abre, arreganha os dentes, e desfere mais uma dentada.

Sempre, sempre aquele aperto que não a deixa dormir e não a deixa pensar. Que se lhe apodera da mente, como se não bastasse da alma, enchendo-a, até transbordar, de imagens e rostos e palavras e silêncios e emoções e pensamentos, suposições, que viveu com aquele homem que é a causa daquele aperto. Impondo-se às novas imagens e palavras, aos novos rostos e silêncios; furtando-lhe, injustamente (como se de justiças pudéssemos falar!) as novas emoções e os novos pensamentos, as novas suposições.

Um dia, que ainda vem longe mas que irá chegar. Sorrirá de troça ao lembrar o aperto que não a deixava dormir e não a deixava pensar. Saberá quão inúteis foram as horas derramadas sob o domínio desse mesmo aperto. E perceberá também, ao lembrar-se dessas horas, quão alto se pode voar quando as garras se desprendem e deixam, finalmente, o aperto fugir.

Para alguma coisa terão servido afinal.

(As horas...)

Vega, aka C.V.O.

Saturday, November 03, 2007

Palavras


Palavras doces, palavras quentes, palavras ternas e absorventes. Palavras breves e sedosas, palavras lentas, voluptuosas. Palavras sedentas, viciosas, clandestinas, silenciosas, que nos beijam ao anoitecer. Palavras lânguidas, calorosas, libertinas, ruidosas, gemidas ao amanhecer. Palavras sopradas, sensuais, palavras fluidas, musicais, soltadas ao entardecer. Palavras fundas e pungentes, palavras frias, contundentes, que nos vêm arrefecer. Palavras curtas, incisivas, carregadas, opressivas, geladas de tão distantes. Palavras ímpias, desconcertantes, egoístas, diletantes, apedrejando palavras frágeis, vulneráveis, vacilantes.

Palavras que guardo comigo, num baú selado, sem fundo, onde arranjo sempre espaço para mais uma. Palavras viajantes, que me acompanham para todo o lado. Palavras com que posso contar, quando preciso delas. É só enfiar o braço, escolhê-las, e puxá-las cá para fora, uma a uma, intactas e magnânimas, imponentes na sua missão de darem sentido e consistência à vida.
A minha eterna gratidão para quem inventou as palavras.

Vega, aka C.V.O.

Tuesday, September 18, 2007

(A)Moralidade

Espiam-se pelas ruas
E becos da cidade
Como se espiando as suas
Dúvidas pudessem calar
Como se as calando as suas
Mágoas pudessem levar
Como se as levando as suas
Culpas pudessem expiar
Como se as expiando as suas
Mentiras e falcatruas
Passadas pudessem honrar.

Em nome do amor afinal
Foram, e o que é isso
Perante a imberbe moralidade?
Será esta senão um esquisso
De amor e paixão omisso,
Lírico, impróprio da realidade?

Vega, aka C.V.O.


Wednesday, August 15, 2007

Qual delas?


Ontem era outra
A vontade, ou seria a mesma?
Que o que muda
Na verdade, não é outra
Senão aquela
Que a escuda
E acautela.
Obstinada
Enganada
Convencida
De que a tem
Acolhida
Recolhida
E até, refém!,
De si, que nada pode
E nada faz
E que ao perceber
Enfim
Que nada acode
E nada traz
A mais,
Desiste
Confusa
Esgotada
E triste
Por impotente.
E é então
Que a musa
E a vontade
Trocam de posição:
Daí para a frente
A reclusa
Será a razão
E a vontade,
Senhora
De si
E da razão
(pouca)
Que subsiste
E que sorri
Agora
Enquanto assiste
Aliviada
Aos desígnios
Da vontade
Concretizada.

Imagem retirada daqui


Vega, aka C.V.O.

Friday, July 27, 2007

Hino aos amigos


Faça-se um hino aos amigos

Relíquias do nosso passado
Actores no cenário presente
Memórias vivas de tempos antigos
Que nos devolvem alegremente.
Personagens e narradores
De um conto inacabado
Guardiães e povoadores
Do presente e do passado.

Há que celebrar os amigos
Que tão bem sabem cuidar das memórias,
Os novos e os antigos
Que nos presenteiam de histórias.

Vega, aka C.V.O.

Tuesday, June 05, 2007

Opostos


Sentada à janela, vejo a rua
Ao longe, a colina imperfeita
A irromper sobre a tela nua
Do céu, que nela se deita
E se deleita, na volúpia
Da lenta chegada da lua.

Vestida agora de escuro
Polvilhada de diamantes
Sábia menina, roça no muro
Do bloco de linhas cortantes.
Vizinhos de dia, e à noite
Enleados como dois amantes.

Vega, aka C.V.O.

Wednesday, May 02, 2007

Surpresas

Há surpresas que surpreendem pelo conteúdo em si. Outras, pela maneira como nos chegam. Outras, pela forma como nos tocam. Outras ainda, pelo momento em que nos abordam. E outras, pela maneira como se revelam. Finalmente outras, as melhores, por não se quererem revelar, preferindo delegar-nos a tarefa de as descobrir.

Vega, aka C.V.O.

Wednesday, April 18, 2007

Ao Tico

Meu pequenino que um dia, um dia a mamã adoptou. Sem querer! E sem prever.... Que um dia, que o tempo arrastou, serias o menino dos olhos da mamã. Sem crer! E já a ver... O consolo, o orgulho, a alegria em que te tinhas tornado. Para ela, mamã, que era eu, que sou eu, para sempre, a tua fã.

Entraste de mansinho e saiste brutalmente da vida de todos nós. Nesse dia de muito azar em que foste pouco veloz e foste atropelado.

Debaixo da figueira, decidimos enterrar o nosso tesourinho. Nos nossos corações, guardámos um lugar cativo para o Tiquinho.

Vega, aka C.V.O.

Monday, March 05, 2007

Coisas de criança

- Se fosses um animal, que animal serias?

- Uma borboleta. Porque é bonita e voa, colorindo os céus com as suas asas. Quem me dera poder voar!

- E tu, se animal fosses, que animal gostarias de ser?

- Uma hiena. Porque é veloz e destemida. Quem me dera correr como ela, para rasgar a selva com o vento a bater-me na face.

- E tu, que animal serias, se te dessem a escolher?

- Um polvo. Porque tem muitos pés e pernas compridas. Quem me dera ter os pés dele, para poder estar ao mesmo tempo em muitos lados. E as pernas dele, para chegar bem longe, e ao mesmo tempo continuar tão perto.

Vega, aka C.V.O.

Wednesday, January 24, 2007

Tempo!


Às vezes. Gostava de ter o dom de o tempo fazer parar. Reter. Por instantes, pequenos ou grandes. E poder deixar-me ficar. Para sempre, nesses instantes. Alheia ao compasso do tempo que apressa os dias dos grandes. Encolhendo prazos, que se julgou. Que se julga sempre. No direito de definir. Penalizando atrasos, tornando os objectivos mais difíceis de cumprir.

Às vezes. Até me esqueço. Que o tempo está a contar. Voltando a ser criança, paro e permaneço. Quieta. Com um mundo à minha espera... à espera que o mande avançar.

Vega, aka C.V.O.