Andava como quem vagueia, sem rumo nem hora nem fito. Só o
desespero das esperanças roubadas a fazia andar, porque parada não conseguia
estar… a impaciência das expectativas a caírem em catadupa, como peças de dominó, era
demasiada para a conseguir suportar quieta.
E assim andava, em linha curva ou recta, tanto fazia,
fustigada pelo vento que rugia cada vez mais forte, como se viesse acudi-la
nesta aflição de não ter para onde se dirigir. Praguejava contra o vento, mas
se não fosse o vento seria outra coisa qualquer, que o problema, sabia ela
muito bem, era a injustiça de lhe terem varrido os sonhos coleccionados com
tantas expectativas, pensamento positivo como sempre lhe tinham dito e que por
norma recusava, e agora, que finalmente seguira o conselho, vira tudo deitado
por terra com o raiar de um sopro que chegou para tombar as peças de um
castelo! Como eram frágeis essas peças e esse cimento…
Ela quer chorar mas não consegue, já foram muitas as
lágrimas que deitou (noutros tempos, outros desgostos), agora a dilaceração é tão
funda que as lágrimas, do fundo do poço, só com muita dificuldade conseguem
emergir.
Mas, entretanto, sente a cara molhada... (serão lágrimas a
chegar? não, que o pranto está bem vedado, ninguém sabe a cheia que lhe vai na
alma…) São - imaginem! - flocos de neve!,
neve a cair e a embotar-lhe a vista, a tapar-lhe os caminhos que já se tinham
fechado, agora é que vai tropeçar e cair como uma peça de dominó… mas isso tanto
lhe faz, pouco importa cair ou continuar a andar, também só anda para não estar
quieta, já que quieta não pode suportar.
O frio, cada vez mais frio, entorpece-lhe os movimentos,
teme não conseguir andar mais, vê-se obrigada a abrandar. Há pedaços de gelo
que lhe cobrem os pés, agora as mãos, o cabelo, tudo… E ela vai-se
deixando ficar, assim como assim, também já não se importa de estar parada,
tanto lhe faz, fica por ficar, bem pode chover ou nevar ou fazer sol, que os
caminhos para ela deixaram de existir, entre ziguezaguear e estar parada que
venha o tempo e escolha, como está a acontecer.
Quando dá por si, nem se mexe, o corpo parece pedra, coberto
de gelo. Tenta raspar um pedaço de gelo mas o braço não lhe obedece… tenta
rodar o pescoço mas o movimento não sai… quer pestanejar mas as pálpebras não
cedem um milímetro (e que secos estão os olhos!). Enfim, rendida às evidências,
apercebe-se de que transformou numa autêntica estátua. Uma estátua, vejam bem! Se
tivesse podido escolher, há umas horas atrás nesta angústia, seria precisamente
numa estátua em que se tornaria! Assim ao menos não vê, não ouve, não espera,
não desespera, não sofre.
Mas ah... afinal ainda consegue ouvir (embora uns decibéis abaixo
do habitual). Há um som familiar que lhe vem do bolso de pedra, é o telemóvel
que está a tocar. O que será que lhe querem agora, quem a vem importunar nesta
pausa sabática de sentidos?! Devagar, em câmara lenta (eufemismo para um braço
de pedra embrulhado em gelo), tenta alcançar, contrafeita, o telemóvel que toca
sem parar… E eis que vê o nome a aparecer no visor e mal consegue acreditar… aquela
pessoa, a única pessoa que ela acima de tudo desejava, mas que estava longe,
despejada de expectativas, de que a viesse procurar! Apetece-lhe gritar, correr
e saltar… Por dentro já grita e salta e corre e por fora - acaba de reparar! - já
nada mais a prende: foi-se o gelo que a cobria, e a pedra em que se transformara
voltou a ser carne e osso, e veias que pulsam a uma velocidade estonteante.
De repente, também o chão se transformou, por baixo da neve
que derreteu aparecem flores em campos ilimitados, e uma estrada ampla de
terra, ladeada de arbustos e canteiros, está mesmo em baixo dos seus pés. Sem
poder esperar um segundo, dispara a correr pela estrada fora, com a alma cheia
de sonhos, em direcção ao castelo que vê lá ao fundo.
Vega, aka C.V.O.