Por todas as coisas que não posso dizer, de tão minhas que são, por todos os sonhos e devaneios, os desejos e os anseios, as hesitações e os receios, os lampejos de emoção, os assomos de escuridão, os momentos de confusão, os relâmpagos de clareza, os abalos de dúvida, os lances de certeza, os instantes de obstinação, os assaltos de fraqueza.
Por todas as coisas que não posso dizer, de tão minhas que são, deixo aqui um desabafo.
No outro dia um amigo meu opinou que, para se ser feliz, é necessária uma certa quantidade de “estupidez natural”. Queria ele dizer que as pessoas com uma propensão genuína para a parvoíce, como dizer e fazer disparates, ou rir de coisas sem sentido nenhum, e sobretudo rirde si próprias, são bafejadas pela sorte de transportarem consigo uma condição incontornável para a felicidade.
Eu acho que ele tem muita razão. As pessoas sérias, que levam tudo demasiado a sério, que pensam antes de rir e que quando lá se decidem rir o fazem com conta peso e medida, pois na sua mente feita de regras a dose de brincadeira tem de ser doseada, não me parece que levem a vida com amor. Falta-lhes a extravagância, a paixão, a liberdade de serem elas próprias, sem limites, sem amarras. Uma gargalhada estonteante, visceral, daquelas que se soltam mesmo cá do fundo e de tão ébrias que vêm nada as consegue parar, deveria ser posta à venda, para que os tristes a pudessem comprar. Depois, provavelmente tomar-lhe-iam o gosto. Logo a seguir o vício… E estariam, finalmente, curados. Felizes para sempre.
Hoje que pensei a fundo nesta teoria do meu amigo, avultou-se na minha mente, já fatigada de tanto pensar, uma questão relacionada: será, também, uma condição incontornável para se ser feliz, gostar de gostar de pessoas?
Isto é, não só gostar de algumas pessoas, daquelas mais chegadas, mas sim gostar de pessoas em geral (obviamente que de umas mais do que doutras…). Gostar de conhecer pessoas interessantes, de ter surpresas, de poder dizer “ah, se não nascesses terias de ser inventado!” ou “valeu bem a pena ter-te conhecido!”, gostar de apreciar quem já conhecemos daquela forma que só quem conhece bem tem o privilégio de apreciar, atentando a todos os pormenores. Gostar de lembrar o que vivemos e partilhámos com certa pessoa, e de como fomos felizes e somos por tê-lo sido nesses momentos de partilha. Gostar de pensar o quanto gostamos de alguém e abrir-se em nós um sorriso enquanto pensamos isso.
Não eram fogos, não eram estrelas, não eram luzes nem pirilampos. A serem gotas de chuva ou flocos de neve, não poderiam ter tanto brilho, incendiar o céu ao cruzá-lo na sua queda livre e desordenada.
Quando alguém lhes tocava, eclodiam, e brilhavam ainda mais, como se rebentassem nas nossas mãos. E desapareciam sem deixar rasto, enquanto outros continuavam a cair. E a maravilhar. De repente, todo o mundo saiu à rua, com o único fim de fazer eclodir pelo menos um daqueles pedacinhos incandescentes, e a desordem generalizou-se, tornando-se tão grande ou maior na rua do que no céu.
Os ânimos só acalmaram quando o céu, finalmente, se apagou, já todos os pedacinhos eclodidos nas mãos de alguém. Mas quando, à noite, os telejornais falaram de uma estrela cadente que se desintegrou e espalhou por terra, um turbilhão de ânimos voltou. Desejos foram pedidos em catadupa, na ânsia de que, se fossem pedidos mais depressa, ainda chegariam a tempo de serem atendidos pela estrela desintegrada.
Se resultou? Não sabemos, pois ainda é cedo, e os desejos querem-se demorados, para saber melhor a sua realização. Mas a esperança, essa, cresceu e iluminou-se, como os pedacinhos do céu, e brilha agora com uma luz própria que está determinada em não mais se apagar.
Preferia deixar e partir, em busca de novos caminhos, guinando pelos pontos cardeais que o instinto me apontasse, como minha única bússola... Em vez de ali ficar, presa de pés e mãos atados ao centro da rosa-dos-ventos, que é o lugar daqueles que não se empenham em grandes descobrimentos, povoados que se fizeram dos gigantes e das tormentas de além-mar...
Sonheicontigo e voei longe, bem longe, quase vi passar as fronteiras da Terra, e alto, tão alto, que os aviões passavam por baixo de nós como pontinhos perdidos no meio das nuvens. Cheguei a um lugar do Mundo banhado pela luz do sol, de um sol que acordava todos os dias um pouco maior que no dia anterior, e que saltava da cama com aquele sorriso parvo e escancarado de felicidade incontida. Ficámos a saber que não chovia há um par de séculos, tinham dado por extintos os chapéus-de-chuva, mas, curiosamente, as flores continuavam a despontar e as árvores a dar frutos o ano inteiro.
Quando acordei, estava a chover, e a chuva devolveu-me depressa à realidade. Misturou-se com as minhas lágrimas e repetiu-me, vezes sem conta, para nunca mais me esquecer, que não posso voltar a viajar assim, tão longe, tão alto… e muito menos sem pára-quedas ou amortecedores no coração.
No outro dia vi no facebook que se tinha criado o grupo do canal #Ericeira no IRC. E alguma coisa me bateu cá dentro. De repente, tive a sensação de que uma parte de outra vida, outra era distinta no tempo e no espaço, se colocava à minha frente sem aviso prévio, e me acenava fervorosamente, na ânsia de que a reconhecesse sem reservas e a acolhesse de braços abertos, mas que acabara por ficar melindrada com alguma hesitação da minha parte, pois apanhada assim de surpresa tive de piscar os olhos uma ou duas vezes para ver melhor, antes de lhe sorrir e dizer “olá, há quanto tempo!”.
Foram dez anos que passaram desde a época em que andava por esse canal. Dez anos, que eu diria não que passaram mas que correram como uma flecha, galopando um após outro, tanto mais velozes quanto mais adiantados na corrida do passar do tempo. E no entanto, agora que olho para trás, parecem-me a mim que foram os dez anos mais longos de sempre, por tudo aquilo que viveram, conheceram, aprenderam e transformaram.
Foram dez anos de amores e desamores, de alguns dias em que acordava e queria voltar a dormir, para não estar acordada a sofrer. De que valia viver, afinal, se não podia ter aquela pessoa?!... Quando agora a resposta é óbvia e cristalina, quando as coisas não dão não dão, e por maior que seja a paixão é impensável dar sem receber, por muito que nos custe entender que não chega sermos só nos a gostar. E hoje em dia já sabemos que há mais, há sempre muito mais para além de uma relação que não corre bem, há mais gente, há mais vida, há tanto por fazer que não há vazios que não sejam preenchidos.
Foram dez anos, também, de grandes e novos amigos, os da faculdade, os do desporto, os amigos dos amigos, e depois ainda os de Coimbra. Tinham-me dito que não havia amigos como os de escola, de adolescente. E é verdade, não há… porque há histórias que só podemos partilhar com eles, e que eles, por sua vez, fazem com que se mantenham vivas e presentes. Mas isso não quer dizer que aqueles que vêm depois sejam menos amigos do que os primeiros, por mim falo que conheci pessoas fabulosas ao longo desta década e que hoje tenho como amigos do peito, com experiências inesquecíveis.
Nestes dez anos estudei, comecei a trabalhar, fui trabalhar para outra cidade, o que implicou mudar de casa, e isto por causa de uma escolha que fiz, por sinal de uma especialidade que uns dois anos antes nem sabia que existia… Aprendi alguma coisa do mundo do trabalho, e sei que me falta aprender muito mais.
Nestes dez anos, houve pessoas que perdi, a família já não é a mesma, embora para mim continue a ser (mesmo quando olho para a mesa de Natal e a veja reduzida a um cantinho) e a morte passou a ser uma ameaça real…
Nestes dez anos, tudo aquilo que vivi, conheci e aprendi fez com que a minha perspectiva das coisas se alterasse profundamente. Agora que estou quase a fazer 29, o meu desejo é que os próximos anos sejam tão cheios quanto estes.
Têm-me faltado as palavras para escrever. Também me têm faltado para falar. As poucas que saem, vejo-as sair sem forma, sem graça, movidas pela necessidade social e não pelo normal prazer de se fazerem expressar. Supérfluas que elas são, conseguem manter conversa e até esconder grandes silêncios, mas não ousam revolver as colegas que estão no fundo, palavras fortes e sinceras em retiro de introspecção.
Há coisas que mais vale manter caladas, ou antes, dialogar apenas com os meus botões. E, ainda assim, em surdina…
Cai a tarde, ou talvez ainda não, que os dias agora são maiores, e os relógios deixaram de contar. Também não contam os dias sempre dantes contados para alguma coisa, nem as incontáveis coisas sempre dantes acumuladas por fazer. A liberdade, finalmente, chegou (chegará um dia, eu sei!), carregada de promessas e trazendo um mundo infindável de possibilidades. E ela não cabe em si de contente, leve e solta, enquanto avança pela estrada fora, vidros abertos e música alto, para a liberdade entrar melhor, sem saber ainda onde ir (talvez pare algures para ver o mar), mas a pensar que há caminhos imensos e diversos a percorrer. Ela quer avançar por quase todos. E terá tempo, se quiser, pois o tempo agora é dela. Só dela. A responsabilidade é toda sua. E ela quer fazer o melhor que puder da sua vida.
Dir-te-ia que doce é a lembrança dos dias que vivemos, mas que esta angústia das horas suspensas, sentida como uma ameaça constante, quase chega para não querer mais. Os pratos da balança estão em disputa...
Ano novo, vida nova, raia a esperança e renasce a vontade de fazer deste mundo um mundo melhor, nem que seja somente o nosso mundozinho pessoal. Há quem leia os horóscopos, procurando encontrar nas palavras do além a aprovação estelar dos seus mais íntimos desejos, que assim se tornam mais perto de pressentimentos, empolgando a confiança e permitindo um pouco mais de tranquilidade. Há quem faça listas com promessas a cumprir no novo ano, que, não obstante a sua validade duvidosa, são fonte de motivação para os primeiros passos da rota translacional.
Há quem, simplesmente, se deixe ficar, vivendo cada dia a seu tempo, e esperando que nunca lhe falte a força, a vontade e a energia para ir bem longe, em múltiplas direcções, ao sabor da inspiração.